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Wednesday, January 26, 2011



Vinicius

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Vinicius é um documentário que muito me impressiona pela sua formosura poética. Também me faz questionar o papel das paixões românticas e do amor desenfreado pela vida. Para aqueles que ainda não o viram, digo e suplico: que o vejam o quanto antes. Aliás, quem já o viu somente uma vez deveria assistir-lhe de novo. Suas lições precisam ser reforçadas. Dirigido por Miguel Faria Jr e lançado em 2005, o filme se abre com as palavras saudosas do Braguinha. Era assim que Vinicius chamava o queridíssimo cronista Rubem Braga, seu grande amigo. Naquelas cenas iniciais do documentário Rubem Braga se dirige diretamente ao amigo morto acerca da chegada da primeira primavera numa Ipanema sem Vinicius de Moraes. Logo a seguir, surge uma vista aérea daquela praia encantada e ouve-se uma belíssima interpretação de “Se todos fossem iguais a você”, a pioneira canção composta pela genial dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Quem canta é o paulista Renato Braz.

Cantor, compositor, diplomata, dramaturgo, letrista e poeta, Vinicius de Moraes (1913-1980) foi um descendente direto na linha de Xangô (saravá!), o orixá deus-rei do trovão, o justiceiro filho de Iemanjá. Educado nas melhores escolas do Rio de Janeiro no início do século XX, ele posteriormente estudou literatura na Universidade de Oxford, onde se inteirou, mais rigorosamente, da lírica inglesa. Depois de ingressar no mundo formal, prestigioso e bem pago da diplomacia, e de publicar alguns volumes de poesia bastante tradicional, esse carioca, para si mesmo “o branco mais preto do Brasil”, descobriu que o prazer maior da sua vida profissional tinha outro endereço: o domínio da música popular. Passou a escrever poemas que se encaixavam em melodias elaboradas por grandes nomes, tais como Carlos Lyra e Baden Powell. Também cedeu sonetos e outras criações poéticas para compositores que lhes cobrissem de sons e harmonias, como Tom Jobim e Toquinho.

Diga-se, de passagem, que escrever letra de música não é para qualquer um não. Tem que ser poeta e um pouquinho mais. Tem que ter ouvido de músico e conhecimento instintivo ou adquirido de nuances musicais. No fundo, Vinicius foi um grande poeta e um grande compositor. Sem parceria nenhuma, escreveu maravilhas como “Valsa de Eurídice” e “Pela luz dos olhos teus”. Vale a pena recordar alguns versos: “Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar / Ai que bom que isso é meu Deus / Que frio que me dá o encontro desse olhar”. Porém, para se atingir a mais completa magia, é preciso suscitar maior sedução por meio de um falso desapego. Por isso o poeta pondera: “Mas se a luz dos olhos teus / Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar / Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar”.

Pode-se inferir uma pequena dose de humor nesse “incêndio” de amor, e a vida de Vinicius realmente se desenvolveu em torno de uma série de fogueiras da paixão. Casou-se nove vezes, por exemplo. Suas esposas podiam ser de idades próximas às suas em diversas fases da vida, ou podiam ser 40 e poucos anos mais jovens. Naquela pioneira canção escrita com Tom o poeta proclamava, “Vai tua vida, teu caminho é de paz e amor / A tua vida é uma linda canção de amor / Abre os teus braços e canta a última esperança / A esperança divina de amar em paz”. A vida de Vinicius que nos mostram os roteiristas Miguel Faria Jr e Diana Vasconcelos foi uma constante busca por amar, sempre amar. A paz, porém, nunca lhe foi duradoura. A cada vez que sua paixão se esmorecia, ele sofria, e sofria muito. Como é de se imaginar, também fazia os outros sofrerem: a esposa do momento, os filhos, os parentes, e certamente alguns amigos.

O turbilhão amoroso de Vinicius não tinha fim e por isso o poeta foi acusado de depravação e outras “imoralidades”. Ele certamente viveu como muitos poetas gostariam de viver. Pouquíssimos deles o fizeram, entretanto, como bem observa Carlos Drummond de Andrade em certo momento do filme. Vinicius foi leal a si mesmo, à sua necessidade de sempre estar apaixonado, para que junto a um copo de uísque e aos amigos do peito, sua vida tivesse sentido. Longe deles, isto é, da paixão sem limites, daquele a que chamou de “cachorro engarrafado”, ou dos parceiros da música e da poesia, Vinicius de Moraes era um homem triste. Porém, bastava um de esses insumos dar força a seu vaso de flores, que seu rosto era só sorrisos e sua mão escrevia preciosidades do amor demais.

“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”, escreveu Guimarães Rosa, mas poderia ter sido Vinicius. Por seu amor à vida e à alegria e por seus extasiados e frustrados amores lhe devemos a graça de sua obra, um elogio à loucura, se loucura for viver intensamente a vida, doa a quem doer, inclusive ao louco amante. O próprio Vinicius resume sua sina em “Como dizia o poeta”, de parceria com Toquinho: “Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais, mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”.
Quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Cartas de Vinicius

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Para minha surpresa, já me perguntaram se também gosto de livros. Isso porque algumas pessoas se impressionam com o meu amor pela música, apesar de não ser músico, enquanto ganho a vida como professor de literatura. Paradoxalmente é assim mesmo que me justifico: é de tanto amor por música, e de tão pouca paciência para absorvê-la através do lento aprendizado de um instrumento, que nunca fui além de um curso de teoria musical em Belo Horizonte nos anos 70.

Adoro cantar, um prazer imediato, apesar de minhas limitações. Mas gostaria mesmo é de aprender a tocar piano em um mês, ou violão em 15 dias. Não dá, não é tia Selma? Do mesmo modo como eu canto, meu amor por literatura também me dá recompensa imediata, tanto na hora de ler quanto na de escrever. Neste caso, gosto mesmo é do processo, e não sinto impaciência nenhuma diante do tempo que possa transcorrer até que algo meu seja publicado ou até que a última página de um livro seja virada. Aliás, meu longo prazer ao escrever não se compara nem mesmo ao efêmero encanto que tenho ao ver minhas palavras inscritas num blog, jornal, livro ou revista. Pra ser sincero, muitas vezes nem gosto de me vê-las ali. Passo os olhos e prossigo com meus afazeres.

Não posso reclamar: apesar de minhas distintas atitudes em relação a elas, amo-as ambas, igualmente, e por isso música e literatura se fundem na minha vida pessoal e profissional. Nesses últimos meses tenho dedicado parte do meu tempo à preparação para um seminário que darei no Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Chama-se “Arqueologia da Paixão em Vinicius de Moraes”. Naturalmente ali se combinam o cancioneiro e a poética de um dos grandes nomes da cultura brasileira. Para ministrar tal curso tenho lido vários volumes que incluem a biografia, poesia, o teatro, a música, e as crônicas do Poetinha.

A obra que iniciei hoje, entretanto, é Querido poeta: correspondência de Vinicius de Moraes (Companhia das Letras, 2003). Trata-se de um tipo leitura que me diverte e me fascina: uma coletânea organizada por Ruy Castro com mais de 200 cartas — ou do Poetinha ou para ele redigidas em mais de meio século. Para o deleite dos interessados, elas foram cedidas por parentes e amigos e arquivadas junto à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Entre muitas outras revelações, essas cartas expõem um Vinicius de Moraes que pouco se encontra na sua obra poética: o diplomata, o pai, o filho, o irmão e o esposo.A primeira carta reproduzida foi escrita pelo Poetinha a sua mãe, d. Lydia, quando ele tinha 19 anos. Conta de uma viagem a Itatiaia, cidade na região serrana do estado do Rio de Janeiro, hoje em dia, mais uma vez, tão tragicamente castigada pelas chuvas. E já chovia muito por lá em novembro de 1932 (quase 80 anos atrás). Sobre a estrada de terra morro acima, super estreita e escorregadia, as rodas do caminhão em que Vinicius viajava tinham correntes duplas, para maior tração, mas os precipícios eram enormes e se abriam logo às margens dos pneus, para o pavor dos passageiros da cidade grande. “Resultado: de músculos contraídos, com ave-marias na boca a cada curva, o vosso filho viu a morte perto do seu nariz durante uma hora e dez minutos” (17).

Diz o poeta: "Esse caminho, conforme nos disse o tal chofer, que e' a cara de são Pedro, não e' nada perigoso quando está seco. 'Quando está molhado', nos disse o animal, é apenas um bocadinho'. Imagina. Não assustes, porém. Para a volta já providenciamos cavalos mansos" (18).“Depois da tempestade, vem porém a bonança”, acrescenta Vinicius (18). Daí surge uma bucólica descrição do hotel e de outras maravilhas do lugar, também com sensibilidade e humor: "Estou escrevendo esta num caramanchão poético e fresco, com sabiás discutindo perto. Uma delicia. Da' vontade de fazer uma poesia que preste. Mas a preguiça é muita" (19).

De fato há um universo de enredos e emoções em Querido poeta, mas aqui tenho somente um cantinho de jornal para representá-lo. Termino, então, com uma dose homeopática do amor do poeta pela família e amigos. Em 1938, aos quase 25 anos de idade, Vinicius partiu de navio para estudar literatura em Oxford, na Inglaterra. A bordo do Highland Patriot, ainda subindo pela costa brasileira, já sente saudades, e escreve à mãe: “Mais do que nunca, só o amor das pessoas conta para mim. É tão simples que chega a ser difícil explicar por quê” (53).

Apesar de apaixonado por uma paulista, Tati (Beatriz Azevedo de Mello), com quem logo se casaria por procuração, o poeta confessa os sentimentos pelo irmão: “Não creio que haja pessoa no mundo de quem eu goste tanto quanto do Helius. No entanto, você viu como nos despedimos? Um simples aperto de mão” (53). Então conclui, sobre os que ficaram para trás: “É que a ausência não é tudo. Há, mais fundo e mais forte, uma coragem de amar perigosamente, mesmo através do incompreensível. As pessoas tocam a vida pra frente, repousadas umas no amor das outras. É formidável isso. Vocês me deram uma grande lição” (54).

1 comment:

  1. O documewntário é delicado e sensível. Sem apelo comercial gritante e sempre desnecessário. Consegue pintar um retrato abundante em detalhes e nuances do poeta, sem sensacionalismo. Houve um tempo em que não dava conta de ler Vinícius: ele era "pegajoso" demais para o meu cérebro pouco desenvolvido. Poeta do detalhe contundente e da nuance gritante, por mais antitéticas que estas características possam parecer. Há de se ter sensibilidade e delicadeza para apreciar suas imagens um tanto... obviamente inusitadas. Penso que ele se aproxima, em certo sentido, de Mário Quintana, pela aparente ingenuidade. Cada um na sua, claro. Estou na torcida pelo sucesso (que penso garantido) de seu seminário!
    Paixão é universo vasto de referência cultural e existencial.
    Parabéns!

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