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Monday, February 21, 2011

Paixão: sina e esperança





Amália Rodrigues (1920-1999), a mais famosa fadista portuguesa, morou, cantou e gravou por uns tempos no Brasil. Ela até mesmo se casou com um brasileiro em 1961. Seu extraordinário legado musical no nosso país foi de grande influência para Caetano Veloso, cantor-compositor que escreveu fados que já fazem parte do mais belo cancioneiro luso-brasileiro de todas as épocas. Na década de 1960 esses dois expoentes da música lusófona criaram pérolas poético-musicais que estabelecem um diálogo sobre a paixão, tema central de um curso que atualmente ensino no Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Na aula inaugural tivemos a oportunidade de compartilhar nossos próprios conceitos sobre o tema tendo em mente, também, a poética de Vinicius de Moraes, obra que estamos estudando paralelamente às investigações sobre a paixão.
Há poucas dúvidas sobre a hipótese de que o termo grego que dá origem à palavra paixão seja pathos. Entretanto, a etimologia consensual de qualquer palavra não encerra nossa busca pela compreensão dos conceitos atribuídos, ao longo dos séculos, a um dado vocábulo do nosso léxico contemporâneo. Não há espaço aqui para desdobramentos filológicos detalhados. Resta-nos dizer que o conceito de paixão – assim como foi o de pathos na Grécia antiga e na Grécia clássica – provavelmente para sempre será caracterizado por inúmeras e profundas contradições. Uma das idéias mais remotas acerca da paixão (isto é, de pathos) é a de passividade, de entrega do ser a uma força superior que o rege, que o subjuga. Inclinação ou tendência natural do ser (ou ethos, em grego), a paixão pode transformar-se em “força destrutiva por desmedida”, segundo a filósofa Marilena Chauí (42). Um conceito mais moderno, porém, é o de que a paixão pode ser a grande força motriz do ser humano. O filósofo francês Gérard Lebrun nos lembra que “paixão e razão são inseparáveis” (18), e que para o filósofo idealista alemão Georg Hegel (1870-1931) em Estética, “[n]ada de grande se faz sem paixão” (Lebrun 18).
Para inspirar nossas discussões preliminares sobre esses dois conceitos de paixão enfocamos o inesquecível e tipicamente dramático fado “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro; e a balada “Coração vagabundo”, de Caetano Veloso. A visão passiva de uma vítima da paixão surge no primeiro verso na letra de Amália Rodrigues: “Foi por vontade de Deus”. O jeito de ser apaixonado e a dor da paixão do “eu” poético inerte e agonizante são, pois, desígnios de Deus. Uma hipérbole sugere, a seguir, que ninguém mais sofre nesse mundo, apenas a persona do poema: “Que todos os ais são meus”. Sua auto-imagem cria uma visão de um “eu” que sofre como um caso de vida excêntrico, de exceção, como se a dor não fizesse parte da condição humana: “Que estranha forma de vida”. A ilusão estéril e anódina é característica marcante da vida dessa persona: “Vive de vida perdida”.
Acreditando no desejo de Deus como causa de seu sofrimento (conforme o primeiro verso do poema), a persona agora, falando ao seu próprio coração, pondera o poder supernatural, metafísico, de uma varinha de mágico como solução para seus males: “Quem lhe daria o condão”. Simbolizada pelo coração, a paixão é então retratada como uma parte do ser sobre a qual a persona não tem poder nem relação de contigüidade. A paixão é autônoma e dirige a vida do apaixonado: “Coração independente/ Coração que não comando”. Para ela, a paixão é mesmo cega e constantemente sofredora: “Vives perdido entre a gente/ Teimosamente sangrando”. Em face da ignorância e estupidez da paixão que lhe assola e desorienta a vida, a persona do poema prefere morrer: “Pára, deixa de bater/ Se não sabes onde vais/ Eu não te acompanho mais”.
Por outro lado, “Coração vagabundo,” canção meio bossa-novista de melodia lenta e triste, foi escrita quase que na mesma época em que surgiu o clássico “Estranha forma de vida” e inicialmente gravada por Caetano Veloso para o seu primeiro LP Domingo (de parceria com Gal Costa). Ao contrário do que se diz no poema português, entretanto, a teimosia não reside no sofrimento, mas sim na esperança de atingir sua plenitude romântica: “Meu coração não se cansa/ De ter esperança/ De um dia ser tudo o que quer”. Caetano compõe a imagem de um ser apaixonado que se vê livre para amar como uma criança, cuja inspiração e fé em melhores dias não desfaleceram por causa da dor e frustração de um amor que morreu: Meu coração de criança/ Não é só a lembrança/ De um vulto feliz de mulher/ Que passou por meus sonhos/ Sem dizer adeus/ E fez dos olhos meus/ Um chorar mais sem fim”. O poema se fecha com a hipérbole da volúpia que habita um coração apaixonado, que dá sentido à vida de quem espera e deseja viver intensamente todas as oportunidades que o mundo lhe oferece: “Meu coração vagabundo/ Quer guardar o mundo/ Em mim”.
Apesar das enormes diferenças entre as visões da paixão em um e outro poema, uma semelhança é inegável. Como no poema de Amália Rodrigues, a persona por detrás dos versos de Caetano Veloso retrata seu coração como uma parte do seu ser que é repleta de determinação, cheia de vontade própria. Apesar do título aparentemente pejorativo e sua melodia ostensivamente melancólica, “Coração vagabundo” é consoante com a visão otimista de Benedict de Espinosa (1632-1677), filósofo judeu que nasceu de pais portugueses refugiados na Holanda. O autor de Ethica dizia não desprezar os perigos da obsessão criada pela paixão, que tanto atemorizam e maltratam o ser humano, mas acreditava na nossa capacidade de “excluir a coisa que causa medo” (Chauí 79), a sina que assombra a “estranha forma de vida” de Amália Rodrigues, e “presentificar aquela que causa esperança” (79), a fé que anima o “coração vagabundo” do músico-poeta da Bahia. Para Espinosa, explica Chauí, é necessário “fortalecer uma paixão da alegria: a esperança” (Chauí 79-80). É hora de se perceber que a diligência pode mais que a passividade. Espinosa, portanto, conclui: “as coisas necessárias são mais fortes do que as contingentes” (Chauí 80).

Obras citadas
Chauí, Marilena. “Sobre o medo.” Adauto Novaes, ed. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 33-83.
Lebrun, Gérard. “O conceito da paixão.” Os sentidos da paixão. Adauto Novaes, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 12-32.
Rodrigues, Amália. “Estranha forma de vida”. Estranha forma de vida: o melhor de Amália Rodrigues. EMI, 2007.
Veloso, Caetano. “Coração vagabundo”. Domingo. Universal, 1967.




Saturday, February 19, 2011

Rosa vermelha



Rosa vermelha

Cecília Figueiredo nos envia esse poema 
de Ary dos Santos, poeta e compositor lisboeta

Escrito para Amália Rodrigues e por ela musicado, 
mas, no YouTube, interpretado pela fadista Katia Guerreio:

Trago uma rosa vermelha
aberta dentro do peito
e
em sei se e' comigo
se e' contigo que eu me deito.

A minha rosa vermelha 
mais parece uma roma
pois quando aberta de noite
 
não se fecha de manhã.

Trago uma rosa vermelha
na minha boca encarnada
quem me dera ser abelha
de tua boca fechada.

Trago uma rosa vermelha
n
ão preciso de mais nada

Pus uma rosa vermelha
na fogueira do teu rosto
mereco ser condenada
por crime de fogo posto.

Trago uma rosa vermelha
que e' minha
condenação
 condenada a vida inteira
a fogueira da paix
ão.

Trago uma rosa vermelha
atrevida e perfumada
e uma rosa vaidosa
a minha rosa encarnada.

Trago uma rosa vermelha
n
ão preciso de mais nada.

Saturday, February 12, 2011

Passagens favoritas dos textos de Contardo Calligaris

 1)  A paixão pelo novo e o casamento

Achamos mil culpados pela mesmice que nos assola. Mas logo a lista dos acusados chega a parceiros e parceiras -como se fossem bolas amarradas no pé, correntes que nos travam. O cônjuge torna-se a encarnação dos motivos pelos quais desistimos do novo e da aventura. Ele é responsável por nosso tédio, culpado de toda estagnação. Ele carrega, aos nossos olhos, os estigmas da mesmice: imaginamos dever-lhe tudo o que parece nos prender -um domicílio, a responsabilidade de sermos pais, mais uma família que se acrescenta ao peso da nossa família de origem etc.

2)       Peixe Grande e a paixão pela vida
Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixão pela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suas ações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou duros.
[...] Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.
De fato, o cônjuge é acusado injustamente: geralmente ele é apenas o porta-voz do medo que acompanha e modera nossa paixão pelo novo. Somos filhos de uma cultura que, ao mesmo tempo, promove o pequeno núcleo familiar fundado no amor e idealiza a liberdade de quem não pára de se reinventar sozinho. Queremos aventura, mas receamos esse nosso desejo e procuramos portos seguros. Culpar o cônjuge é uma maneira de evitar a contradição.
Respeitando esse dilema, a literatura de ajuda, descrição e análise do casamento segue duas tendências. Há os aventureiros, que encorajam homens e mulheres a -expressão consagrada- "realizarem seu potencial" perseguindo novos horizontes. E há os casamenteiros, partidários de compromissos e negociações que permitiriam atravessar a vida de mão dada.
[...] Se os esforços para manter ou reinventar o casamento nos parecessem tão emocionantes quanto a procura e o risco da novidade, o casamento encontraria um fôlego extraordinário, pois conciliaria a paixão pelo novo com a nostalgia de um porto seguro.

3)   Vicky Cristina Barcelona

Os casais que se amam de paixão, cujos parceiros parecem ser feitos um para o outro, em regra, acabam tentando se matar -com faca, revólver ou qualquer outro instrumento (cf. Juan Antonio e Maria Emilia). É porque, se o outro me completa e vice-versa, o risco é que nenhum de nós sobreviva à nossa união -ao menos, não como ente separado e distinto. Mas, por mais que seja ameaçadora, a paixão amorosa é uma tentação irresistível (cf. Cristina, Vicky, Judy) por uma razão simples: nas narrativas de nossa cultura, ela é o protótipo ideal da experiência plena, da vida intensamente vivida.

Por sorte ou não, o amor-paixão é raro. A maioria de nós vive relações menos "interessantes" e menos fatais -relações em que a gente se preocupa em criar os filhos, decorar a casa, ganhar um dinheiro ou jogar golfe (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark). Não seria tão mal, salvo pelo detalhe seguinte: em geral, nesses casais "normais", ao menos um dos parceiros vive com a sensação de que sua escolha amorosa é resignada, fruto de um comodismo medroso: "O outro não é bem o que eu queria; culpa minha, que não tive a coragem de me arriscar a amar..."

[...] Os que parecem não idealizar o amor-paixão passam o tempo se protegendo contra ele. Deve ser por isto que a "normalidade" amorosa pode ser insuportavelmente chata: porque ela exige a construção esforçada de defesas contra a paixão -argumentos morais e sociais, sempre mais "razoáveis" do que racionais (cf. Mark, Doug).

[...] A paixão não é uma coisa que a gente possa encontrar saindo pelo mundo como um turista da vida (cf. Cristina). Pois não basta esbarrar na paixão; ainda é preciso encará-la quando ela se apresenta.

[...] "É um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão embora iguais ao que elas eram no começo, sobretudo Cristina...".

Minha amiga tinha razão. O amor e a paixão não nos fazem necessariamente felizes, mas são uma festa e uma alegria porque deles podemos esperar ao menos isto: que eles nos tornem um pouco outros, que eles nos mudem.
Agora, nem sempre funciona...

4)       A coragem do amor que dura


É inegável: nossa cultura idealiza a ruptura, a aventura, a saída para o mar aberto. Em matéria amorosa, o momento que preferimos contar é a hora do apaixonamento. Depois disso, gostamos de imaginar que "eles viveram felizes para sempre", mas sem entrar em detalhes que poderiam transformar a história numa farsa.

Uma boa solução, aliás, é que os amantes morram logo. O sumiço (de ambos ou de um dos dois) evita que a comédia da vida que levariam juntos contamine a apoteose do encontro inicial. Os amantes ideais são os que não duraram no tempo: Romeu e Julieta, o jovem Werther e Charlotte, Tristão e Isolda.
Concluir o quê? Que a coragem é sempre a de quem deixa a mornidão de seu conforto para se queimar num instante de paixão? Será que não pode haver coragem nos esforços para que o amor dure?
Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.

Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses. Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.
Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.

O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: "Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem".
 

5)       Closer - Perto demais: por que somos infelizes no amor?

Os evolucionistas dizem que os homens são infiéis por necessidade biológica. Para que a espécie continue, os machos seriam programados com o desejo de fecundar todas as fêmeas possíveis. A teoria tem uma falha: as mulheres são tão infiéis quanto os homens (embora os homens se recusem a acreditar nessa banalidade).

O senso comum tem outra explicação: a paixão iria se apagando com a repetição, os humanos gostariam de novidade. Pequeno problema: a idéia de que a novidade seja um valor é especificamente moderna; no entanto a inconstância em amor é um hábito antigo. Outro problema ainda maior: na condução de nossas vidas, somos obstinadamente repetitivos.

[...] Como pode ser que um encontro, em que mal se sabe quem é o outro ou a outra, contenha uma promessa que basta para levar alguém a dar um chute num amor que dura?

Tento responder: apaixonar-se é idealizar o outro, durar no amor é lidar com a realidade do amado ou da amada. Antes de ponderar os charmes da idealização, duas observações.

Um impasse: para manter a paixão, devo continuar idealizando o parceiro. Mas, para idealizar o outro, devo mantê-lo a distância. Se mantenho o outro a distância, renuncio aos prazeres de amor, companheirismo, cumplicidade, convivência.

Um paradoxo: se me separo porque me apaixono por outra ou outro, o parceiro que deixei se distancia de mim, portanto volto a idealizá-lo e a me apaixonar por ele. Por que gostaríamos tanto de idealizar o outro que vislumbramos num novo encontro? Uma nova paixão amorosa é provavelmente o sentimento que mais pode nos transformar, para o bem ou para o mal. Por exemplo, se o outro me idealiza, carrego seu ideal como um casaco novo: modifico minha postura para que o pano caia bem no meu corpo. De uma certa forma, tento me parecer com o ideal que o outro ama em mim.

Cada amor, quando começa, é uma aventura. Não porque encontro um novo parceiro, mas porque, ao me apaixonar, descubro ou invento um novo ideal e, ao ser amado, mudo para me aproximar do que o outro imagina que eu seja.

A inconstância amorosa talvez seja a expressão imediata do desejo de mudar -não de trocar de parceiro, mas de se reinventar. Não é estranho que, na hora em que um amor começa, alguém decida se dar um novo nome. Nenhuma mentira nisso, apenas a convicção e a esperança de que a paixão nos transforme.
Infelizmente, mudar é difícil: a sedução exercida pelos novos amores é uma veleidade, um pouco como as resoluções de que as coisas serão diferentes no ano que começa.

Um homem volta para o lar depois de ter estado nos braços de outra. Sua mulher pergunta: você me ama ainda? Ela tem razão, é a única pergunta que importa. Uma mulher volta para o lar depois de ter estado nos braços de outro. Seu homem pergunta: você esteve com ele? Insiste: quero a verdade. Pede os detalhes: gostou? Gozou? Onde aconteceu, em que posição, quantas vezes?

O ciúme feminino é uma exigência amorosa. O ciúme do homem é uma competição com o outro, um duelo de espadas, uma esgrima homossexual que tem pouco a ver com o amor pela amada e muito a ver com as excitantes lutinhas masculinas da infância.

6) Mentiras sinceras

Talvez a maioria dos relacionamentos amorosos adoeçam e morram por causa disto: não porque o parceiro deixou crescer uma barriga displicente nem porque a gente estaria cansado da mesmice e a fim de novidades, mas porque, ao vivermos juntos, aos poucos, perdemos a generosidade. E a generosidade é (ou, melhor, deveria ser) o próprio do amor; ela está quase sempre presente, aliás, quando a gente se apaixona. Explico.

O amor que nasce idealiza o amado, mas essa idealização é contemplativa, não é normativa. Ou seja, pedimos, eventualmente, que o amado ou a amada estejam perto de nós, mas não que mudem e ainda menos que renunciem a serem quem eles são. Claro, enxergamos neles algo que eles podem não ser, mas o encanto amoroso é justamente esse engano: "Seja como você é, pois é assim que descubro em você tudo o que quero, mesmo que talvez você não seja nada disso". Em suma, o amor, inicialmente, é respeitoso. Se você não é bem o que vejo em você, o engano é meu; amar consiste em querer e saber continuar se enganando. As coisas mudam quando começamos a medir a distância entre o ser amado e o ideal que lhe penduramos nas costas. De repente, o engano nos parece ser uma artimanha do outro; é ele que deveria se emendar para voltar a ser o ideal que inspirava nosso amor.

O encanto do começo se transforma, assim, numa lista inesgotável de pequenas ou grandes exigências. Tudo o que pedimos ao ser amado (que ele ganhe mais, que seja simpático com nossos amigos, que nos acolha com um sorriso, que pare de roncar no nosso ouvido, que leia Goethe em alemão, que não coma com as mãos, que não caminhe na nossa frente na rua, que esteja em casa na hora certa) é apenas um derivativo. O que queremos é a volta do que nós mesmos perdemos: o encanto pelo qual enxergávamos nosso ideal no ser amado. Esse encanto impunha o respeito, ou seja, permitia que deixássemos o amado e a amada serem, simplesmente, eles mesmos.

15) Ilhas desconhecidas

Encontrei a melhor definição do que é viajar numa maravilhosa e breve fábula de José Saramago, que acaba de ser publicada, "O Conto da Ilha Desconhecida" (Companhia das Letras). O protagonista explica assim seu desejo: "Quero encontrar a ilha desconhecida. Quero saber quem eu sou quando nela estiver".

Viajar é isto: deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós, algo que não conhecíamos até então. Sem estragar o prazer dos leitores, só direi que, no fim da fábula de Saramago, talvez o protagonista não encontre sua ilha, mas ele encontra uma mulher. A moral da história é incerta, entre duas leituras opostas.

Primeira leitura: quem casa não viaja (a não ser de férias); casar-se é desistir de viajar. É o que pensam, com freqüência, homens e mulheres casados. E é também o que os leva, às vezes, a se separarem. Quando achamos que o outro nos impede de viajar, ou seja, que ele nos priva da aventura de descobrir o que poderia haver de diferente em nós, o casal se torna nosso inimigo. Claro, na maioria dos casos, acusamos o casal de uma inércia que é só nossa.

Exemplo: anos atrás, na França, um amigo se interessava pelas pessoas que desaparecem sem razão aparente e refazem sua vida alhures, sob outro nome, como se tivessem sido vítimas de uma amnésia repentina. Em todos os casos em que meu amigo conseguira entrevistar esses "desaparecidos", os mesmos constatavam que, depois de seu sumiço, em poucos anos, eles tinham reconstruído uma situação de vida parecida com aquela que tinha motivado sua fuga.

Segunda leitura: o protagonista descobre que a mulher ao seu lado é a própria ilha desconhecida que ele procurava e que a verdadeira viagem é o encontro com um outro amado. Faz todo sentido, pois o amor e a viagem, em princípio, têm isto em comum: ambos nos fazem descobrir em nós algo que não estava lá antes.


O outro amado nos transforma. Tanto quanto a chegada numa terra incógnita, ele nos revela algo inesperado em nós.

Por isso, aliás, o viajante e o amante podem esbarrar em problemas análogos: às vezes, ao sermos transformados pela viagem ou pelo amor, não gostamos do que encontramos, não gostamos dos efeitos em nós do amor ou da viagem. Essa é, em geral, a única razão séria para se separar ou para voltar da viagem.

Moral dessa coluna (e talvez da fábula de Saramago): os outros não são nenhum inferno, são uma viagem. Agora, para amar, como para viajar, é preciso ter determinação e coragem.

Wednesday, February 9, 2011

Pedro, meu filho...



Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado - a insensatez de um coração constantemente apaixonado.E porque te fiz com o meu sêmen homem entre os homens, e te quisera para sempre escravo do dever de zelar por esse alqueire, não porque seja meu, mas porque foi plantado com os frutos da minha mais dolorosa poesia.

Da mesma forma que eu, muitas noite, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua.

E porque vivemos tanto tempo juntos e tanto tempo separados, e o que o convívio criou nunca a ausência pôde destruir.

Assim como eu creio em ti porque nasceste do amor e cresceste no âmago de mim como uma árvore dentro de outra, e te alimentaste de minhas vísceras, e ao te fazeres homem rompeste meu alburno e estiraste os braços para um futuro em que acreditei acima de tudo.

E sendo que reconheço nos teus pés os pés do menino que eu fui um dia, em frente ao mar; e na aspereza de tuas plantas as grandes pedras que grimpei e os altos troncos que subi; em tuas palmas as queimaduras do Infinito que procurei como um louco tocar.

Porque tua barba vem da minha barba, e o teu sexo do meu sexo, e há em ti a semente da morte criada por minha vida.

E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço.

Como as amplas estradas da mocidade se transformaram nestas estreitas veredas da madureza, e o Sol que se põe atrás de mim alonga a minha sombra como uma seta em direção ao tenebroso Norte.

E a Morte me espera em algum lugar oculta, e eu não quero ter medo de ir ao seu inesperado encontro.

Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder.

E amordacei minha boca para que não gritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto mais amordaçado, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias.

Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei.

E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar:

Assim é o canto que te quero cantar, Pedro meu filho...

-- Um poema em prosa do livro Para viver um grande amor. 1962. São Paulo: Folha de São Paulo/MediaFashion, 2008. 204-205.

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É hora de escrever algumas reflexões quando elas ainda permanecem meio fresquinhas na cabeça, depois de ler e/ou ouvir seus comentários pelo blog e através da sua participação na aula de ontem. Foram muitos tópicos ou facetas da vida e da obra de Vinicius que pudemos abordar. Gente, obrigado por tornar meu trabalho tão prazeroso! Gostaria de ter continuado noite adentro, mas a vida não é assim. O mundo da imaginação, do desejo, da fantasia, de que falava a Anália, tem que ser “fechado” na hora de irmos cuidar do jantar das crianças, cuidar do Zé Maria, lavar a louça, pagar as contas, etc.
Entre tantas coisas, ficou essa lembrança de como muitos poetas, ou artistas em geral, têm dificuldades na hora de separar esses mundos, porque para eles há o mundo que existe e o mundo que eles fazem nascer na sua obra, onde querem a imaginação e os sentimentos livres. Esses artistas não conhecem ou não aceitam facilmente as barreiras de separação inquestionáveis, instransponíveis, ou imutáveis.
No campo da literatura, a poesia, por não ter a mesma imposição ou limitação logocêntrica da prosa, é o espaço do sonho, da imaginação, do desejo, da inspiração, da fantasia, do amor e da paixão per excellence. Creio que era nisso que pensava Carlos Drummond de Andrade ao dizer que Vinicius viveu imerso no mundo da poesia como outros pouquíssimos poetas (eu diria que Fernando Pessoa e Emily Dickinson tiveram muito em comum com Vinicius de Moraes, nesse sentido). Na introdução e, mais uma ou duas vezes, no corpo do livro O poeta da paixão, José Castello aponta os “excessos” da vida pessoal do Vinicius, mas isso não quer dizer que Drummond, homem austero e reservado, teria dito aquelas coisas, muito menos como se elas fossem prerrogativas da vida do verdadeiro e raro poeta, daquele que vive em pleno mundo da poesia. Aqueles “excessos” de amores e bebidas não são manifestações ou comportamentos modulares necessários para se escrever poesia. São, a meu ver, no caso de Vinicius, resultado de um estado de alma que dele se apoderava. O grande poeta e músico Vinicius de Moraes escolheu viver daquele modo porque somente daquele modo a vida lhe tinha sentido. Acho que se ele não matou e não cometeu outros crimes, foi de seu direito beber e apaixonar-se até morrer aos 67 anos.
Vou fazer algumas outras referências aqui que poderiam ter sido feitas ontem em sala, mas o tempo no mundo concreto (e não imaginário) impõe limites, como se sugeria há pouco. Uma coisa: ao comentar uma obra ou um autor por escrito estamos assumindo uma posição de poder, pois temos um meio de comunicação a nosso serviço, sabemos que seremos lidos, e, portanto, teremos um impacto sobre a percepção que outras pessoas têm sobre aquilo que escrevemos e as obras abordadas. Esse privilégio requer responsabilidade pelos nossos atos. Penso que prudência, humildade, sinceridade e justiça devem ser cuidados a tomar e estar presentes nos escritos que publicamos, pois, entre outros efeitos, aquilo que dizemos sobre os outros refletem muitos aspectos do que somos nós.
Ao apontar defeitos alheios podemos revelar os nossos próprios, e esses são bons motivos para se exercitar boa fé, além daqueles outros cuidados acima arrolados que exigem pelo menos a leitura completa do texto antes, por exemplo, de nós o atacarmos ferozmente. Certas expressões que podemos usar ao analisarmos uma obra têm um alcance ou, melhor, um efeito de descrédito totalizador que aniquila o objeto de reflexão. É o caso do conceito de “ridículo”. Podemos até pensar levianamente, mas temos que ponderar mais cautelosamente antes de dizer em público que algo é “ridículo”, por causa da força retórica do termo.  Essa palavra tem o potencial para funcionar como uma bomba de um terrorista que se explode e se mata com o objetivo de matar os usuários de um aeroporto, como o de Moscou há poucos dias. Vejo o conceito de “ridículo” dessa maneira porque se estivermos enganados, ou mesmo cegos aos cruciais elementos do objeto criticado, estaremos nós mesmos nos expondo ao ridículo, ou de fato nos “explodindo” ao nos tornarmos ridículos.
Um termo que, segundo testemunhas oculares, foi usado pelos ditadores militares no seu despacho oficial (um documento desaparecido) ao demitir Vinicius de Moraes da diplomacia em 1969 foi “vagabundo”. O termo reflete muito bem a ignorância e o preconceito dos ditadores brasileiros em relação a Vinicius. O homem pode ter aborrecido os burocratas de Brasília por escrever e cantar música popular (por eles considerada uma arte inferior), mas “vagabundo” ele não era. Deixou mais de 400 belos poemas e mais de 400 belas canções, escreveu dezenas de livros, teatro, crônicas, dirigiu filmes, e chegou a passar três meses praticamente trancado em uma sala, com as cortinas fechadas de modo a sentir a inspiração de uma noite “eterna”, para, na companhia de Baden Powell, escrever canções e mais canções.
Este e todos os demais comentários publicados no nosso blog estão, palavra por palavra, ligados ao Google, que gerencia o sistema Blogger. Qualquer pessoa que pesquisar Vinicius de Moraes na internet poderá ter acesso às palavras de cada um de nós. Portanto, o nome de cada um de nós encontra-se on the line worldwide. Há outros professores e colegas lendo nosso blog, e empregadores atualmente buscam dados sobre candidatos eletronicamente. Do mesmo modo, muitos outros pesquisadores anônimos poderão fazê-lo, e alguém poderá citar nossas palavras (instigantes ou impensadas) num ensaio. Como moderador do blog eu poderei retirar comentários, se vocês me pedirem que o faça, a qualquer momento, mas não serei eu um censor de antemão em relação ao que vocês escreverem. A vida “concreta” muitas vezes não nos permite deletar nossas palavras. Aqui temos a vantagem de poder publicar e despublicar (desculpem o neologismo) nossas idéias, mas recomendo cuidado, muito cuidado, sempre.

Saturday, February 5, 2011

Castello e Faria Jr: as primeiras perguntas

Car@s estudios@s de Vinicius de Moraes e da Paixão,
Espero que a leitura da obra de José Castello (a biografia de Vinicius de Moraes) lhes esteja trazendo muitos temas para reflexão e muitos momentos prazer. Após discutirmos a paixão em sala de aula, assistir ao filme de Miguel Faria Jr. e ler, até agora, uma boa parte do livro de Castello, vocês provavelmente já se fizeram algumas perguntas a respeito desse material e da obra viniciana neles referenciada. Meu propósito aqui é compartilhar algumas das minhas próprias indagações, que poderão servir como exemplos ou ser úteis como quiserem (respondendo a elas, por exemplo).
1)    Qual é a relação de VM para com a criação poética, isto é, que papel tem o ato de escrever poesia na sua vida?
2)    É a sua vida comandando a sua arte ou o contrário, ou uma equação que se constrói de lado a lado, nas duas direções?
3)    Como pensar na obra de VM em relação ao modernismo brasileiro?
4)    O que levou VM a escrever poesia erudita e dela se afastar em certas ocasiões para, depois, abandoná-la por completo?
5)    Por que razão VM teria optado por se casar oficialmente nove vezes em um período de 42 anos?
6)    Qual é a importância do nascimento e morte desses casos de amor para a sua poesia?
7)    Que tipos de relação teriam o poeta e o homem de carne e osso VM para com suas musas?
8)    Que tipos de amor o poeta expressa por elas?
9)    Seria o amor de VM pelas mulheres marcado pelo egoísmo ou egocentrismo?
10)     Como o poeta retrata a paixão?
11)     Como VM lidava com os aspectos pragmáticos e cotidianos da vida?
12)     Que tipo de amigo era VM?
13)     Que aspectos da vida de VM estão relacionados com suas parcerias musicais?
14)     Por que razão teria acabado a parceria Vinicius de Moraes-Tom Jobim?

Friday, January 28, 2011

Paixão: Uma conversa com o Prof. José Luiz Foureaux



Caro colega e amigo Zé Luiz Foureaux,
Obrigado pelo toque. Concordo com você: a poesia de Vinicius passa por muitas fases, mas as últimas são de uma simplicidade que, à primeira vista, engana, pois nelas o poeta se despe de pretensões eruditas. Porém, ele quase sempre carrega em si indagações que nos remetem a um dos maiores mistérios da condição humana, a paixão – a paixão (ou a inexplicável ausência dela) diante dos amigos, dos amores, dos familiares, da natureza, do álcool, do sexo, da comida, da poesia, da música, da arte em geral e de alguns outros hobbies; aliás, a mesma paixão desenfreada pela liberdade, pela adrenalina e pelo imponderável êxtase da própria paixão, e pela própria vida em si.
É como você mesmo disse: “a paixão é um universo vasto de referência cultural e existencial”. Tantos (mas tantos mesmo) são os seus elos com outras disposições, emoções, e motivações humanas, inclusive aquelas mais veneradas por uns, como a espiritualidade, ou mais prestigiadas por outros, como a razão! É curioso como que nem podemos genuinamente odiar nada ou ninguém se não for por causa de uma forma ou outra de paixão. Que loucura esse mistério humano, pois onírico como a própria demência, obscuro como a morte, poderoso como nosso instinto a preservar a vida, o que faz nosso coração bater até debaixo d’água, maravilhoso como o mais belo ocaso, e renovador como uma leve chuva de primavera.
Paixão é um mistério de muita seiva, que nos nutre e nos prende, que se agarra em nós como as raízes de árvores centenárias (visto aquela acima, que fotografei no Parque Inhotim de Belo Horizonte), mas é mistério também potencialmente assassino, como o fogo, embora na queima de uma paixão o “fogo” seja tantas vezes "bem-visto". Pode ser penosa e desconcertante a paixão, como a solidão, mas doce e irresistível como a jaboticaba de minha terra, Paraguaçu. Por tudo isso, suponho que a paixão seja mais ambivalente e contraditória que qualquer outra possível aventura nesse mundo. O legado de Vinicius me faz pensar desse modo, sem me redimir e sem me afastar dessa aventura. Muito pelo contrário.
*     *     *     *     *
O documentário é delicado e sensível. Sem apelo comercial gritante e sempre desnecessário. Consegue pintar um retrato abundante em detalhes e nuances do poeta, sem sensacionalismo. Houve um tempo em que não dava conta de ler Vinícius: ele era "pegajoso" demais para o meu cérebro pouco desenvolvido. Poeta do detalhe contundente e da nuance gritante, por mais antitéticas que estas características possam parecer. Há de se ter sensibilidade e delicadeza para apreciar suas imagens um tanto... obviamente inusitadas. Penso que ele se aproxima, em certo sentido, de Mário Quintana, pela aparente ingenuidade. Cada um na sua, claro. Estou na torcida pelo sucesso (que penso garantido) de seu seminário!

Paixão é universo vasto de referência cultural e existencial. Parabéns! -- JLF
Maria Bethânia tem um depoimento lindo sobre Vinícius num documentário rodado por um tal de Grachot ou GRanchot (Falha a memória visual do nome do francês). Gigantesca, a figura da bahiana. Delicada e ousada a imagem que ela faz do poeta. Vinícius não pode ser abordado com parâmetros estereotipados da "academia". Concordo com a "diva", ele é um poeta da "alma brasileira" (ênfase da cantora)! Evoé  -- JLF